Film Noir - o Tópico

[Samwise]

Essa cópia está de facto com muito bom aspecto - diz no início que o financiamento (para o restauro?) foi providenciado pela The Film Noir Foundation (https://www.filmnoirfoundation.org/).

Ainda só espreitei os créditos iniciais. Vi entretanto online um outro filme que me andava a "atormentar", o The Amazing Mr. X aka The Spiritualist. Uma daquelas obras insignificantes cheia de nomes desconhecidos, mas que conta com um ás no baralho, a cargo da direcção fotográfica, o John Alton (falei dele mais atrás a propósito do Raw Deal). E vale essencialmente por essa vertente, já que está assombrosa na atmosfera de claridade, escuridão e fumo que cria. O filme é um cross-over entre terror (na onda do espiritismo fake) e noir ("murder drama") que se vê relativamente bem - ou que se suporta sem grandes queixumes - por conta precisamente da fotografia. Dei por ele inicialmente a olhar para os posters que o Eddie Muller escolheu para o livro "The Art of Noir" (este aqui - acho que aprendi mais por ele, só a folhear as páginas e ver as fotos, do que a ler os textos mais extensos no livro da Taschen).

É public domain e está disponível online, para quem quiser espreitar. A cópia não é grande coisa, mas foi a melhor que encontrei:



É impressionante a quantidade de filmes série B virtualmente desconhecidos que são public domain e que se podem encontrar na net... Cheira-me que vou explorar muito esse "mercado" depois de passar a limpo a cobertura do bolo.

[Samwise]

Vi este, Lady in the Lake - A Dama do Lago (1947), de Robert Montgomery.
https://www.imdb.com/title/tt0039545/

Realizado e interpretado por Robert Montgomery, baseado no livro de Raymond Chandler, tendo como protagonista o detective Philip Marlowe. É mais interessante pela sua forma do que pelo seu conteúdo; o filme é quase todo no POV da personagem principal, utilizando então o método de câmara subjectiva. A história parte de uma base interessante mas peca por se tornar demasiado intrincada e pouco polida, embora satisfazendo minimamente. O elenco desiludiu-me um bom pedaço e o humor presente acaba por ser um dos seus pontos mais fortes. É somente razoável.

Já viste este (vai ser o meu próximo)?

https://www.criterion.com/films/28066-r ... pink-horse

[Samwise]

Umas palavritas acerca do segundo filme realizado por Kubrick, em 1955, e a primeira incursão em território noir antes de The Killing, que faria no ano seguinte.

Tal como o primeiro filme que realizou, é uma obra modesta, quase "caseira", que denuncia limitações orçamentais (o enredo é simplista, os actores de segunda linha, e os valores de produção estão à mostra no cenário), e em que ainda não se vislumbram traços autorais do rigor milimétrico e megalómano que viria a caracterizar grande parte da sua obra posterior. Nota-se, contudo, que é um passo firme, artisticamente muito mais apurado, que descola da sua tentativa inicial de realização - Fear e Desire. Mesmo com um enredo sem grandes "oscilações", Kubrick monta uma narrativa de contornos noir feita de "recordações" em cima de "recordações" recorrendo a flashbacks (num mecanismo tipo matriosca que evoca o Körkarlen de Victor Sjöström - anos antes desta associação ter sido feita pela a sequência "Heeere's Johnny!" de The Shining), enquanto o seu "olhar de fotógrafo" treinado proporciona algumas maravilhas estéticas em certos planos, quer de interior, que de exterior, o suficiente para fazer descolar o filme do patamar da mediania.

Apesar de ser um filme de curta duração, cerca de uma hora, parece haver alguma dificuldade em encher a narrativa com "materia relevante", pelo que "houve tempo" para incluir de forma contextualizada mas algo forçada uma sequência de ballet a solo, interpretado pela sua esposa de então, a bailarina Ruth Sobotka, que foi também a directora artística do filme. Em conjunto com a sequência final de desenlace da intriga, e que é passada num armazém de produção de manequins de plástico para montras, esta perfomance em palco dota contudo o filme de um cunho diferenciador - daqueles que fazem de uma obra um objecto singular e de difícil classificação.

Fica-se a pensar que filme teria feito Kubrick se tivesse tido o apoio de um grande estúdio e os meios à disposição como teve, por exemplo, John Huston para a sua "Relíquia Macabra".

[paupau]

Já não me lembro muito do filme, a maior recordação é que achei o filme bastante experimental, tem imagens a negativo e tudo, mas ainda não é um Kubrik, temas e técnicas não são desenvolvidos como a partir deste filme.
Pergunto-me se a cena dos manequins não será uma homenagem à Lady from Shangai feita com parcos recursos.

Enviado do meu SM-A510F através do Tapatalk

[José]

Vi este, Lady in the Lake - A Dama do Lago (1947), de Robert Montgomery.
https://www.imdb.com/title/tt0039545/

Realizado e interpretado por Robert Montgomery, baseado no livro de Raymond Chandler, tendo como protagonista o detective Philip Marlowe. É mais interessante pela sua forma do que pelo seu conteúdo; o filme é quase todo no POV da personagem principal, utilizando então o método de câmara subjectiva. A história parte de uma base interessante mas peca por se tornar demasiado intrincada e pouco polida, embora satisfazendo minimamente. O elenco desiludiu-me um bom pedaço e o humor presente acaba por ser um dos seus pontos mais fortes. É somente razoável.

Já viste este (vai ser o meu próximo)?

https://www.criterion.com/films/28066-r ... pink-horse

Não conhecia, vi ontem. Gostei, sim. Moderadamente, mas gostei. Valorizei mais a construção das personagens e as suas ligações do que propriamente o plot. Apreciei também alguns apontamentos de humor, que achei delirantes.

[mansildv]

https://en.wikipedia.org/wiki/Phantom_Lady_(film)

Gostei bastante deste Phantom Lady!
Samwise, obrigado pela sugestão

[Samwise]

Não conhecia, vi ontem. Gostei, sim. Moderadamente, mas gostei. Valorizei mais a construção das personagens e as suas ligações do que propriamente o plot. Apreciei também alguns apontamentos de humor, que achei delirantes.

Também vi e fiquei com uma opinião mais ou menos coincidente com a tua. Gostei ainda de alguma "consciêncialização social" derivada do choque entre o americano de "estatuto" e o mexicano descalço, do rigor dos planos e dos movimentos de câmara (logo a abrir tens uns jump-cuts jeitosos com a passagem da camioneta), e de um ou outro diálogo mais afiado e presciente (a conversa entre o Gagin e a Pila sobre as "mulheres fatais" ***). É um filme estranho e diferente em relação aos seu demais contemporâneos.

*** - Para evitar mal entendidos ( ), e para contextualizar as coisas, não isto não é um filme "maroto", e há mesmo uma personagem que se chama Pila...

Gostei bastante deste Phantom Lady!
Samwise, obrigado pela sugestão

De nada - muito em breve vou revê-lo. Espero não me desiludir face à boa imagem que tenho dele (com algumas zonas apagadas pelo meio).

[José]

Não conhecia, vi ontem. Gostei, sim. Moderadamente, mas gostei. Valorizei mais a construção das personagens e as suas ligações do que propriamente o plot. Apreciei também alguns apontamentos de humor, que achei delirantes.

Também vi e fiquei com uma opinião mais ou menos coincidente com a tua. Gostei ainda de alguma "consciêncialização social" derivada do choque entre o americano de "estatuto" e o mexicano descalço, do rigor dos planos e dos movimentos de câmara (logo a abrir tens uns jump-cuts jeitosos com a passagem da camioneta), e de um ou outro diálogo mais afiado e presciente (a conversa entre o Gagin e a Pila sobre as "mulheres fatais" ***). É um filme estranho e diferente em relação aos seu demais contemporâneos.

*** - Para evitar mal entendidos ( ), e para contextualizar as coisas, não isto não é um filme "maroto", e há mesmo uma personagem que se chama Pila...

Yep, subscrevo por inteiro. O filme pega nos moldes clássicos do film noir mas dá-lhe uma personalidade muito própria, muito vincada, que subverte, a meu ver, os códigos mais tradicionais do género. Esse investimento formal é muito refrescante e acho que foi o que mais me seduziu no filme. Depois, uma pequena nota para a personagem do Pancho, que gostei logo de rompante; não é que fui ao IMDb e constatei que o actor que o interpreta foi nomeado ao Oscar por essa composição ?!? Porreiro, porreiro... O título do filme em Português é que me deixou espantado: Do Lodo Nasceu Uma Flor (?!?). Quanto à personagem principal feminina, aquele nome que ela tem, credo.

[José]

Murder By Contract - Assassino Por Contrato (1958), de Irving Lerner
https://www.imdb.com/title/tt0051959/?ref_=nv_sr_srsg_0

Estava a passear pelo Youtube desta vida e apareceu-me uma sugestão de um vídeo de Martin Scorsese a falar sobre este filme. Ao que parece, é um dos noir série B que ele mais gosta, há muitos anos. Fiquei bastante curioso e procurei logo pelo filme; está lá disponível, no Youtube, gratuitamente, com excelente qualidade de som e imagem.

O filme narra as desventuras de Claude, o "assassino por contrato" do título em Português, um homem solitário, parco em palavras e metódico na sua profissão. Este vê-se a braços com um dilema moral ao descobrir qual o novo alvo que tem para eliminar; durante poucos dias, terá que estudar a melhor forma de levar a cabo a sua missão, mesmo sendo um tipo de trabalho que nunca lhe tinha calhado em sorte.

Não é que o tenha considerado fascinante, mas fiquei bastante absorvido pelo que vi. Gostei, gostei muito - e conta apenas com 1h20 de duração. Mesmo que não o considere na sua essência um filme noir, até consigo encaixá-lo nesse paradigma, sim. É um exercício de estilo muito digno dentro do género e bem realizado, muito cool também. Percebe-se em várias cenas a influência que teve em Scorsese e na sua filmografia. Li no IMDb que foi filmado em 7 dias (!). Passa a impressão de ter um espírito art-house europeu; fez-me lembrar, a espaços, o Le Samourai - Ofício de Matar, de Jean-Pierre Melville.

[Samwise]

A minha lista aumenta todos os dias.

Keep'em coming, keep'em coming...

[Gaspar Garção]

Visto ontem, a última das obras primas do Siodmak do noir que me faltavam ver, que o confirma como um realizador no top três do género! (ficam-me só a faltar dois filmes dele do género, o Fly-By-Night, do início da carreira americana, e o bem cotado The Strange Affair of Uncle Harry).

Gaspar, andas por aí? A tua falta é sentida neste tópico.

Chegaste a ver o The Strange Affair of Uncle Harry?

É muito semelhante ao filme anterior dele - o The Suspect - quanto ao tema (uma pessoa de "bom coração" é posta perante um cenário em que tem de ponderar conscientemente assassinar alguém) e ao contexto moral de culpa e remorso. Gostei bastante de ambos - talvez desse um ligeiro edge ao segundo por conta dos vinte minutos finais "à benfica" ( ), que provocam algumas ondas de choque numa narrativa até aí relativamente mansa...

Sam, vi há dias o Strange Affair, até achei interessante, mas um pouco aquém dos melhores exemplos dele.
Um pouco inverosímil, e com personagens um pouco irritantes.
De qualquer forma, nem me desagradou o twist, que muitas das vezes era imposto pelos estúdios ou pela censura, mas que neste filme até não me "caiu" mal...
E atenção à Ella Raines, que grande... atriz.

Ah, e um amigo sugeriu-me este filme há dias, o "Dark Waters", do grande André de Toth, com a bela Merle Oberon, que valeu bem a pena, grandes atores, um cenário um pouco diferente (situado no Bayou de New Orleans), e uma história, curiosamente, a lembrar alguns noirs do Siodmak, Preminger e o Tourneur:

https://www.imdb.com/title/tt0036745/?r ... lmg_act_24

[Samwise]

Sam, vi há dias o Strange Affair, até achei interessante, mas um pouco aquém dos melhores exemplos dele.
Um pouco inverosímil, e com personagens um pouco irritantes.
De qualquer forma, nem me desagradou o twist, que muitas das vezes era imposto pelos estúdios ou pela censura, mas que neste filme até não me "caiu" mal...
E atenção à Ella Raines, que grande... atriz.

A Ella Raines neste momento para mim é só Phantom Lady.





A personagem que ela interpreta no The Strange Affair of Uncle Harry não tem espaço para grandes voos - é um papel algo discreto e sereno - mesmo que a certa altura tenha de "partir a loiça". Quem para mim rouba as cenas nesse filme é a Geraldine Fitzgerald, pelo menos na recta final.

Ah, e um amigo sugeriu-me este filme há dias, o "Dark Waters", do grande André de Toth, com a bela Merle Oberon, que valeu bem a pena, grandes atores, um cenário um pouco diferente (situado no Bayou de New Orleans), e uma história, curiosamente, a lembrar alguns noirs do Siodmak, Preminger e o Tourneur:

Ainda não vi esse (está na lista, está na lista...) mas tenho muito boas recordações do Crime Wave.

[Samwise]

Estou a rever este - e depois vou passar ao seu par temático, a outra face da moeda:

Vi hoje o Scarlet Street do Fritz Lang. Lançado logo depois de "The Woman in the Window", também de Fritz Lang e com os mesmos protagonistas e alguns secundários (e que vi há dois diaa), não é uma "repetição" desse outro filme, mas uma variação completamente diferente à volta da questão do amor e da culpa, mas também da rejeição. E é a prova de que um "remake" pode ser feito por boas razões, podendo, até, ser superior ao original. Mesmo que já soubesse a história (e a versão de Renoir é admirável), foi impossível não me deixar enredar pela "descida às trevas" de Edward G. Robinson. Das poucas capacidades de análise que as circunstâncias da vida me deram, fiquei com a ideia de que se trata de uma bela (e também serenamente diabólica) obra prima.

Eu gosto muito desses dois do Lang, estão entre as melhores obras dele, mesmo que não sejam tão populares, famosas, ou abrangentes na mensagem quanto o Metropolis ou o M. - e estou de acordo que são duas variações feitas pelo mesmo realizador e com os mesmos "protagonistas" sobres as mesmas temáticas (para além das que apontas: a tentação, o desejo, as circunstâncias que provocam o "shift" moral, o arrependimento - e se este ainda "vem a tempo"... penso que são muito caras ao Lang). Por esta altura acho que já baralho e confundo um pouco os dois, mas lembro-me de algumas sequências de eleição (uma a ver com a faca que cai e fica espetada no chão entre marido e mulher, outra com o "regresso à realidade", e como isso é conseguido do ponto de vista técnico, ou ainda as micro reflexões sobre a arte...). Agora fiquei cheio de vontade de os ir recordar.

[Samwise]

The Woman in the Window (1944) e Scarlet Street (1945) podem ser apreciados individualmente, mas a experiência de os ver um a seguir ao outro, "back-to-back", e por esta ordem, traz recompensas ao espectador. São farinha premium do mesmo saco, duas variações sobre as mesmas temáticas, exploradas de uma perspectiva freudiana leve (anunciada, desde logo, e por extenso, na sequência de abertura do primeiro filme), a que não falta uma exploração moral através da justiça "justa" (cada um tem o castigo que merece, à boa maneira do Antigo Testamento), e uma forte componente de entretenimento de que Lang nunca abdicou ao longo da carreira. E de facto, a tragédia e o humor (por vezes delirante) andam de mãos dadas ao longo da(s) narrativa(s), trocando frequentemente de lugar em poucos segundos de fita. O trio principal de actores é o mesmo nos dois filmes: Edward G. Robinson (o tentado), Joan Bennett (a fonte da tentação) e Dan Duryea (o chantagista), e as interpretações estão ao nível da excelência narrativa.
Não há muito melhor do que isto dentro do género noir.

[Samwise]

The Big Heat, ainda do Lang, um filme radicalmente diferente dos anteriores, muito mais "directo ao assunto", e à primeira leitura (só à primeira...) mais afastado de temas caros ao realizador. Um objecto que nas mãos de um artesão menos competente teria provavelmente resultado num amontoado violento de banalidades. Não é o caso. É um policial de primeira água, carregadinho de guloseimas cinéfilas.

Para já uma noção: eis um cartaz promocional (a cena em questão não aparece no filme) que hoje em dia seria impensável colocar na rua: